Manuseando velhas crônicas espanholas amareladas pelo tempo; interpretando manuscritos de aventureiros e cientistas; comparando dados fornecidos por sábios, poetas e historiadores, a gente custa a adotar uma versão inteligível para esse símbolo mitológico - o Eldorado. As andanças épicas de todos aqueles que cruzaram a Amazônia, de uma maneira ou de outra, têm relação com a lenda. Ela empolgou cavaleiros e bandidos, reis e soldados, como uma bússola, cuja agulha apontava no rumo do sonho e da fantasia.
Fortunas foram gastas, vidas humanas sacrificadas, duelos se sucederam; terror, crueldade e traição - tudo era válido nesse frenesi de ilusão e cobiça. Vejamos então, como foi que a lenda do Eldorado exerceu ação tão poderosa sobre a mente do europeu arrivista.
Primeiramente, os espanhóis dominaram o Caribe. Já, desde as chamadas terras firmes do Darien, ao cruzarem o Panamá pestilento, eles começaram a ouvir histórias fantasiosas contadas pelos naturais, e ampliadas pela sua fértil imaginação. Escutavam atentos as referências ao Biru ou Peru, do lado do Pacífico. Um deslumbramento onírico pairava no ar e crescia, cada dia mais. Os corações batiam com ansiedade. Bastou Balboa transpor o istmo insalubre na madrugada do dia 15 de setembro de 1513, para os espanhóis esparramarem-se pelas costas do "Mar del Sur" (Pacífico), descendo pelas praias do Tahuantinsuyo (Colômbia, Peru, Equador, Bolívia e Chile). Pareciam um enxame de abelhas. Indiferentes aos perigos e à inclemência do clima, apoderaram-se e estabeleceram-se nas culminâncias andinas.
Os naturais continuavam falando em ouro, diamantes e esmeraldas - a única linguagem que realmente interessava aos conquistadores. Não queriam eles outro assunto. É claro que os nativos desejavam ver afastad os para longe de seu domínio aqueles intrusos indesejáveis, cruéis e prepotentes. Mesmo sem entender a razão, logo eles sentiram que o europeu tinha obsessão pelo ouro. Daí, a habilidade com que inventavam historias estapafúrdias, localizando as regiões auríferas em pontos afastados e quase sempre inacessíveis. Elas eram aceitas, coloridas e ampliadas pela cupidez espanhola.
Mas o ouro encontrado no Peru não foi bastante para satisfazer expectativas tão obstinadamente elaboradas. Não deu para mitigar a fome de lucro, tanto do general quanto do soldado. Os homens estavam decepcionados. Queriam mais e mais. Seu lema, então, passou a ser: fortuna ou morte.
Certo dia, em meio àquele delírio equatorial, um índio chibcha aprisionado em Cundinamarca por Luiz de Daza, ao narrar uma de suas fábulas, referiu-se ao Eldorado. Era a primeira vez que essa palavra era pronunciada. As atenções se fixaram. O assunto despertou o mais viv o interesse. Os espanhóis passaram a só falar nele. Fizeram tudo para obter do índio mais detalhes da narrativa. O índio, porém, não foi muito claro, quer por dificuldade lingüística, quer por não ser preciso na comprovação de seu relato. Desesperados, os conquistadores começaram a torturar o pobre selvagem, a fim de arrancar informações mais concretas. Como as coisas não corriam segundo seu desejo, passaram a garrotear o cacique, que acabou concordando em falar o que sabia e o que não sabia. Foi então que o príncipe indígena, antes de morrer, detalhou a impressionante narrativa, a qual acabou por reorientar o foco de atenção dos espanhóis para o interior da Amazônia.
Interessante uma observação: de tantas versões da lenda do Eldorado, apenas esta, narrada pelo cacique chibcha na alvorada da descoberta da América, é que foi confirmada, mais tarde, por Sebastião de Banalcázar. Ela consignava que, vencida a Cordilheira, a uma distância de 15 dias de caminhada no rumo do nascente, junto a um lago de águas tranqüilas, estava plantada uma cidade de delícias e riquezas incomparáveis. As casas eram cobertas de ouro; os utensílios, de prata pura, e as ruas pavimentadas com esmeraldas e rubis. Era a capital de um reino paradisíaco, onde vivia um cacique chamado Zipa. Todos os anos, após a brotação de uma planta medicinal, que os índios chamavam de "nachac", ultimados os preparativos, o cacique deveria celebrar o "sunna" - uma cerimônia expiatória e propiciatória, sobre as margens do lago.
Ao cair da noite, acompanhado por um numeroso grupo de guerreiros, sacerdotes e gente do povo, o Zipa fazia-se coroar solenemente, em um estrado armado sobre a areia da praia. Depois, com quatro dos mais altos sacerdotes, subia em uma balsa de junco, levando consigo muitos objetos de ouro, prata e diamantes; levava também, resinas aromáticas e essências odoríferas, para o ferecer às divindades lacustres Quia e Quinigágua. Chegado ao meio do lago, enquanto os sacerdotes seguravam tochas e queimavam incenso, o cacique atirava as oferendas ao fundo das águas. Em seguida, um servo cobria o corpo do chefe com uma substância resinosa. O mais graduado dos sacerdotes, então, soprando através de um canudo, cobria o corpo do príncipe com ouro pulverizado, só deixando os olhos a descoberto. Assim, totalmente dourado, resplandecendo à luz das tochas, em comovente cerimônia de imersão, o soberano mergulhava nas águas do lago, sobre-nadando até ver-se livre daquela pesada envoltura metálica.
Essa cerimônia era uma penitência relacionada com a falecida esposa do monarca. Acusada, ao que parece sem razão, de adultério com um dignitário da corte, ela sofreu uma humilhação terrível: em um banquete público foi obrigada pelo marido, a comer os órgãos genitais do amante, morto e mutilado de véspera. A mulher indi gnada declarou-se inocente, e apesar de torturada, recusou-se a cumprir a sentença. Exasperada, aos gritos, acabou desvencilhando-se dos guardas e fugiu, correndo em direção ao lago. Atirou-se às águas, juntamente com uma serva fiel e com a pequenina filha do casal, uma princesa adorada pelo pai. Surpreendido com aquele suicídio, o Zipa fez tudo para que os corpos fossem resgatados. Tudo em vão. Abandonadas as buscas, um astuto sacerdote convenceu o chefe de que o "gênio do lago" havia acolhido as mulheres no fundo, para uma vida melhor e mais feliz.
Dias depois, contudo, apareceu flutuando, e foi recolhido na praia, o corpo a princesinha, privado dos olhos e da genitália, em adiantado estado de decomposição. O mesmo sacerdote explicou, então, que o "gênio do lago" havia restituído os restos mortais da filha, naquele estado, a fim de castigar o pai cruel e indigno. Os corpos da esposa e da serva jamais foram encontrados. Então, o Zipa foi tomado de tal sentimento de culpa, que acabou chorando convulsivamente.
Com profundo remorso, fez uma promessa solene: todos os anos, naquela data, voltaria ao lago para depositar às águas as jóias mais requintadas do império. Supunha com isso expiar a sua culpa. E assim começou a fazer. Os sacerdotes providenciaram um engenhoso e invisível sistema de redes e drenos para, na calada da noite, recolher os objetos, dando a entender ao Zipa que o fantasma de sua esposa retornava ao local, e acolhia jubilosamente as oferendas. A liturgia foi se repetindo nos anos seguintes, até ser incorporada ao calendário daquele povo. A tradição consigna que os Zipas que se sucederam prosseguiram com o ritual, até que as hordas de conquistadores espanhóis dispersaram o povo e acabaram com a prática do "sunna".
A partir de 1550 quase ninguém mais se lembrava do culto. O cerimonial estava definitivamente abolido. Esta lenda foi de tal modo difundida que o vocábulo "Eldorado", inicialmente atribuído ao cacique, passou a designar um reino, um território: o tabernáculo onde estava depositada uma arca com as maiores riquezas da Terra.
Desde aquela época remota, a lenda do Eldorado tem exercido uma ação sedutora sobre a mente dos homens. Mesmo em nossos dias, uma busca frenética continua. Ninguém mais procura o rei Dourado, mas, a "morada do sonho". O "império da ilusão" continua a desafiar a insaciável ambição da raça humana. O núcleo de habitações lacustres, no centro do qual ficava o palácio do Zipa, a capital do reino Eldorado, segundo os historiadores, chamava-se Manoa ou Quivira. Os topônimos Eldorado, Manoa e Quivira eram usados, indiferentemente, para designar o mesmo lugar.
Agora, a pergunta: em que parte da Amazônia estará o Eldorado? No cimo da serra Zipaquirá, junto ao lago Guatavita, perto das Minas de Sal de Bogotá, na Colômbia? Em Liang anates? No vale do Orinoco, junto ao lago Maracaibo ou no interflúvio Meta-Guaviare? No sopé da serra Pacaraima? Quem sabe, no vale do Rio Branco, ou na ilha de Maracá, no Uraricoera? Junto ao lago Janauari, próximo a Manaus? Quem sabe na região do extinto lago Parime, que durante dois séculos figurou nos mapas da América Meridional, e que, a partir de 1802, por influência de Humboldt, foi suprimido dos Atlas?
Com a pressão colonizadora vinda dos Andes, do Caribe, das Guianas e do Planalto Central Brasileiro; com essa periferia toda vasculhada sem resultado, quem sabe o Eldorado não esteja no interior ignoto da Amazônia Brasileira? Ninguém pode responder. No mundo racional, não há uma resposta. Só alimentamos esse assunto com a ajuda da sensibilidade onírica. Afinal, o sonho conviveu e convive com a Humanidade. Enquanto houver vida, haverá sonho. E o que é a vida senão um sonho?
( Amazônia Legen dária - Altino Berthier Brasil - Ed. Posenato Arte & Cultura, 1999 )
---------------------------------------
Glossário:
1. Chibcha: indivíduo dos chibchas, povo encontrado pelos espanhóis em Nova Granada no séc. XVI.
2. Estapafúrdia: diz-se de pessoa ou coisa extravagante, esquisita, esdrúxula, excêntrica, singular.
3. Onírico: relativo a, ou próprio de sonhos. |